06/08/2004

Eu, os outros e o espelho

Ainda na senda da extraordinária viagem nos novos comboios da C.P., presenciei a algum não menos extraordinário.

Estava moi même a tomar nota mental de tudo o que me rodeava quando deparo com o riso meio abafado da rapariga que viajava no banco da frente.
Ora, “riso?”, “Patrícia, vamos prestar atenção”, pensei eu de mim para comigo.
E assim fiz.

Mas, sinceramente não percebi nada que tivesse qualquer tipo de piada. “Bolas, tenho um risco na cara?”, “esqueci-me de tirar o nariz de palhaça?”, questionei. Não, nada disso.
A rapariga ria para mim e não de mim, como quem pede auxílio para não continuar a fazer figura de parva quando nos rimos, exteriormente, sós. Pedido de auxílio ao qual não podia de todo ser indiferente. “É prestar ainda mais atenção”, retorqui.
E de repente fez-se luz! Qual ensaio sobre a cegueira (um dia falarei sobre isto…).

No banco da frente seguia um Sr. que ao telemóvel dizia: “olha, lá, então a tua amiga fulana de tal, ainda está no departamento de não sei o quê da C.P.?”, “ai sim?”, “então vais-me fazer o favor de perguntar se é permitido, aliás, qual é a regulamentação interna da C.P. que proíbe viajar com os pés esticados e pousados no banco da frente, está bem?”, “sim, sim, eu aguardo que me ligues a dizer qualquer coisa”, “sim, porque eu aposto que há uma regulamentação interna a proibir isso”, “era só o que mais faltava não existir nada.”

Palavra de honra se percebi alguma coisa. Percebi que algum ignóbil estava a gastar dinheiro ao telemóvel, a falar alto (todo o comboio deve ter ouvido aquela conversa, bem, quase todo) e a ser o motivo de riso da rapariga, minha companheira de banco.

E de repente, fez-se luz, de novo (nem quero pensar na conta da electricidade deste mês…)!
Qual não é o meu espanto, quando, reparo que um Sr. que viajava no banco paralelo ao nosso, dormitava (gostava de saber como conseguia, porque, sinceramente é difícil com tanta luz e com aquela música de fundo…), com os pés esticados e apoiados no seu banco da frente!
Ah! Que desplante! Que desfaçatez! Como te atreves tu, oh alma, a esticar os pés, quando, por infortúnio (digo eu) viaja na mesma carruagem um Sr. com os mais elevados conhecimentos dentro dos meandros da C.P.?

Eu não queria acreditar que alguém fosse capaz de fazer um telefonema daquele género…
Meu Deus! Mas será que aquele génio (o do telefonema, claro está, que o outro, o dos pés esticados, se alguma genialidade lhe assistia, perdeu-a por completo) fará o mesmo telefonema a alguém quando o seu vizinho da frente precisar de um conhecimento no hospital, ou precisar de saber quais são os direitos que assistem quando esse mesmo vizinho receber uma carta do senhorio a aumentar-lhe sem mais nem porquê a renda?
Cheira-me que não. Mas isso sou eu, ou melhor, o meu nariz, de qualidades olfactivas inquestionáveis, a cheirar…

Tal brilhante alma saiu na estação de Cortegaça.
E a história fica por aqui, pensei eu.
Mas não.
Pois, curiosamente, no vidro do banco onde foi sentado toda a santa viagem, podia ler-se em letras quase garrafais (sem necessidade de ligar a alguém conhecido nos meandros da C.P.): “lugares reservados a pessoas de mobilidade reduzida, grávidas e acompanhantes de crianças ao colo”…
E garanto que aquele homem não preenchia nenhuma das três hipóteses.
Para além de homem, com porte pseudo atlético, levava um maço de tabaco na mão, pronto a ser utilizado mal saísse na estação…

Olhar para os outros e apontar o dedo sem antes olhar para o espelho e ver aquilo que este nos reflecte, nem sempre é boa política….

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